quinta-feira, maio 20, 2010

inventando ruas onde o abismo é sonho

o dia me pesa onde a saudade é queda e água e eu me procuro nos espelhos da casa tateando o que de dentro em mim é imagem e som – a voz dele é o meu silêncio quando preciso acordar. tenho o que me farta como melodia que se inscreve e arde como tatuagem marcada a ferro em brasa. ele me toca e o meu corpo se dobra em medo e contentamento.

está em mim o dia inteiro, quando tenho raiva e desesperadamente lavo de minha pele o seu cheiro, chuva temporã, dias frios, tempestades de vontades e de saudades. estou nele quando a fome é sinal aberto para falta de medo e grudo nele até quando sou covarde.

no dentro dele minha noite é desculpa de não fazer nada, fechar os olhos, aguçar a memória e ver a estrada em 3D me trazer de volta: menina cansada de tantas batalhas numa Madalena que em muitas vezes é vulto em ruas desertas.

é azul o nome que escolho para sorrir em esfinge. e se eu morro, deixo de herança ao lado do vestido estendido sobre a cama o último beijo, a poesia desidratada e aninhada sobre o peito do que foi ontem e é hoje, um aboio - não de tristeza - mas de quem sorri quando a noite cai.

(ele é em mim na flor guardada no meio do livro de Neruda. ele lia Neruda e hoje já não entende mais, desconfio até que tenha queimado meus livros e cartas).

e quando já não for, é como fechar os olhos nele, porque todas as tardes em rosa chiclete improvisam o desejo e um moço, mochila pendurada nas costas, a espera do que já veio. eu até digo tantas vezes que o amo, mas isso já não faz diferença nem em ouvir a mim mesma. se for verdade, é apenas uma música de uma balada difícil de ser tocada em qualquer rádio. ele é esfinge e eu, poesia decifrada. até finjo dormir para o tempo passar e o desejo morrer de sede.

em mim ele é um desenho, um homem de cabelo grande, sorriso de felicidade como marca sobre a minha saudade (não tente entender o vácuo que se forma: só quem transpira desertos podem dispor de angústias).

ele é em mim quando a chuva cai, quando o telefone toca e quando o ontem veste um vermelho sangue e se molda em mim grávido para vestir outro dia.

(lembra daquele toque? a sua mão vestiu a minha em luva e o dentro exorcizou minhas faltas. não quero qualquer ontem, nem qualquer beijo, nem qualquer riso, quero o impossível, porque o fácil não me resiste nem redime).

o que guardo, de desertos é professor. e quando o silêncio se finge de morto, eu sei que o moço sabe, mas assim mesmo, vira para o outro lado e dorme.

sou nele quando o tempo é inteiro e quando se parte, o perto tem mais quilômetros que o distante. e no meu dentro o rádio toca aquela música e não se toca de tanta vergonha. em mim, tudo pensa ele, até quando não durmo e sonho.

ele é em mim a noite inteira quando o beijo é outra boca. e quando o digo, o silêncio corta o som e apaga o bom.

(eu até penso nele, e já nem sinto raiva).

Dira Vieira